quinta-feira, 2 de maio de 2013

Algumas coisas sobre a Pec 37

Rodrigo Regnier Chemim Guimarães:

Essa Comissão formada na Câmara dos Deputados para discutir um possível “acordo” a respeito da PEC 37 dá medo, pois o espaço para “negociar” um tema dessa envergadura, nos moldes que vem sendo radicalizado pela polícia, é quase nulo. O correto seria o puro e simples arquivamento dessa proposta. Mas já que está formada a Comissão, me permito traçar algumas premissas básicas – e, portanto, “inegociáveis” – de processo penal que devem nortear uma discussão minimamente séria – sem qualquer corporativismo, diga-se – a respeito do modelo de Justiça criminal que se pretenda para um país democrático e republicano como o Brasil:
1) Toda vez que o Estado toma ciência da notícia de um delito de ação penal pública, ele tem por deve constitucional apurar esse delito e, confirmada a prática delitiva, promover a ação penal contra o seu autor, buscando sua condenação;
3) O Ministério Público é previsto na Constituição Federal como o titular privativo da ação penal pública, cujo exercício, como dito, é obrigatório em sede de delitos desta natureza, ou seja, na quase a totalidade dos delitos previstos em lei – e não apenas aqueles que envolvem agentes políticos, servidores públicos, ou policiais;
4) Para exercitar esse poder/dever o Ministério Público necessita preencher as condições da ação e pensar nos pressupostos de validade da petição inicial, sem o que não conseguirá atuar;
5) Uma das condições da ação é a chamada “justa causa”, que é a necessidade de verificação de um lastro probatório mínimo (uma “base”, como diz o art. 18 do CPP) que dê suporte ao fato a ser narrado na denúncia;
6) Para formar essa “justa causa” é que se coletam dados preliminares (se investiga);
7) Essa coleta preliminar de dados não é definitiva em relação às declarações colhidas das pessoas, somente adquirindo a característica da definitividade no que concerne aos documentos (no sentido “lato”, isto é, tudo o que documente o crime) e perícias irrepetíveis;
Assim, a coleta preliminar dos depoimentos colhidos deverá ser repetida em juízo para adquirir o “status” técnico jurídico de prova plena, podendo, então, ser valorada pelo juiz por ocasião da sentença;
9) Essa coleta de dados pode ser feita por qualquer pessoa, inclusive o investigado e a vítima (ainda que estes não tenham poder coercitivo, podem ouvir pessoas, juntar documentos, coletar elementos de prova, contratar perícias particulares, por ex.);
10) O particular também pode coletar dados, a exemplo do que fazem a imprensa e a própria OAB, com suas diversas comissões internas;
11) Alguns elementos probatórios preliminares, no entanto, por representarem restrições às garantias individuais das pessoas, são limitados ao Estado (busca e apreensão, interceptação de comunicação telefônica, prisão temporária, etc);
12) Daí a importância da investigação estatal, que pode ser feita por diversos órgãos, a exemplo do que ocorre com o Parlamento (CPI), com o COAF, com o BACEN, com o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, com a Receita Federal, e com inúmeros outros órgãos públicos, dentro de suas esferas de atuação;
13) As Polícias Civil e Federal tem como função primordial investigar crimes, atuando, portanto, como órgãos de apoio ao titular da ação na coleta destes dados preliminares;
14) A investigação criminal (pública ou privada) tem como finalidade última servir ao titular da ação penal, permitindo que ele forme sua “opinio delicti” a respeito do caso penal e possa decidir se exercitará a ação penal ou promoverá o arquivamento da investigação (por falta de base para a denúncia, por falta de condições da ação, por não preenchimento dos pressupostos de validade da denúncia);
15) No processo penal, diferente do processo civil, o réu não tem ônus probatório algum, pois ele é presumido inocente de acordo com a Constituição Federal;
16) Portanto, o ônus da prova no processo penal é todo do Ministério Público que é quem acusa o réu;
17) Se o ônus da prova é todo do Ministério Público, nada mais ilógico e fora de propósito do que impedi-lo de buscar essa prova, notadamente quando a polícia é omissa ou a investigação por ela realizada é lacunosa ou mal conduzida (em qualquer delito de ação penal pública, frise-se);
18) A ideia de “paridade de armas” no processo penal é tema alusivo ao contraditório, relacionada à igual oportunidade de fala, de manifestação;
19) Não existe “paridade de armas” no processo penal no que diz respeito à produção probatória, pois, do contrário, caso houvesse, o réu deveria ter o dever de colaborar na investigação; não seria possível falar-se em direito ao silêncio do réu; o réu não poderia negar-se a produzir prova contra si; e, pior, ainda teria o ônus de provar tudo o que alegasse. A plena “paridade de armas”, então, conduziria ao absurdo, por exemplo, de exigir que o réu provasse suas alegações de excludentes de ilicitude e culpabilidade, condenando-o no caso dele não conseguir desincumbir-se do ônus;
20) De qualquer forma o advogado do investigado tem o direito de acompanhar a investigação criminal realizada contra seu cliente pelo Estado, podendo requerer diligências, acompanhar determinados atos de investigação (relacionados diretamente com a pessoa do investigado), tomar apontamentos, extrair fotocópia integral dos elementos de prova já documentados na investigação (súmula vinculante 14 do STF);
21) Os princípios do contraditório e da ampla defesa – como “princípios” – não podem ser adotados nessa fase, sob pena de transformar a investigação criminal em processo (nos moldes do já falido “juizado de instrução europeu”) e sob pena de inviabilizar a investigação, pois se estivessem presentes nesta fase, como “princípios”, toda vez que deixassem de ser observados gerariam nulidade, e, assim, exigiriam do investigador que sempre comunicasse o advogado do investigado a respeito do que estaria realizando em termos de investigação, sendo obrigado a aguardar sua presença na realização do ato, sob pena de nulidade. Presentes os princípios, ao final da investigação não teríamos uma decisão pela acusação – ou não – do suspeito, mas uma sentença de mérito, já que não faria sentido repetir tudo de novo no processo;
22) Deve-se criar uma fase intermediária de defesa, entre o oferecimento e o recebimento da denúncia, com antecipação da causa interruptiva da prescrição para o oferecimento da denúncia;
23) Toda pessoa que sentar na cadeira do investigador – seja polícia, seja Ministério Público, seja juiz – não consegue atuar de forma isenta, pois para investigar uma notícia de crime é preciso construir hipóteses mentais a respeito do fato noticiado e ir fazendo verificações destas hipóteses ao longo da investigação (coleta-se, nesse contexto, naturalmente, provas de “cargo” e de “descargo”);
24) A ideia de “imparcialidade” da polícia é igual à ideia de “imparcialidade” do Ministério Público na fase de investigação, já que ambos atuam nessa fase sem um juízo prévio definitivo a respeito da notícia do crime. No início de qualquer investigação que não seja decorrente de flagrante delito, o que se tem é um juízo de possibilidade (as razões positivas que me levam a acreditar que a notícia seja verdadeira se equivalem às razões negativas que me levam a não acreditar nela). Constroem-se, então, as hipóteses mentais já referidas, dando início à investigação. Somente quando se atinge um juízo de valor de probabilidade é que, tanto a polícia, quanto o Ministério Público passam a atuar acreditando mais numa das possíveis versões do fato. Se as razões positivas que levam a polícia – e o Ministério Público – a acreditarem na versão inicial da notícia e na autoria que recaia numa determinada pessoa, fazem com que ambos tomem decisões a esse respeito: a polícia decide “indiciar” o suspeito; e, ao final da investigação, o Ministério Público decide acusar o suspeito;
25) Toda atividade investigativa é controlada externamente pelo Magistrado (seja pela via do “habeas data”, seja pela via do “habeas corpus”, seja pela via do mandado de segurança, seja nos pedidos de medidas cautelares pessoais e reais);
26) A polícia goza de independência administrativa em relação ao Ministério Público, mas não de independência funcional, já que o Ministério Público exerce comando funcional sobre a polícia ao requisitar (determinar, ordenar) diligências e exercer o controle externo da atividade policial.
Enfim, observadas essas premissas mínimas e irrenunciáveis num Estado democrático de direito, qualquer negociação que possa acontecer nessa Comissão formada no âmbito do Congresso Nacional, adquire um mínimo de plausibilidade.

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